sábado, 26 de junho de 2010



CARTA PARA QUEM ESTÁ LONGE

Foto: Vanessa Tavares


Escrevi quatro linhas, recebi dezesseis de volta. Gosto quando multiplicam minhas palavras, quando deixam de culpar o tempo, quando silenciam palavras a dedo no papel.

Então quer dizer que o sol acende a lareira e fica o dia quase todo te aquecendo? Deve ser pra te afastar o inverno - que por aqui se institui quando abaixo de 18 graus - te afastar o frio de dormir sozinho; o frio da ausência das crianças na frente da TV, falando alto, pedindo mais um tempo antes de sentarem à mesa; o frio de não ter o sabor da comida da esposa atravessando a rua indo ao seu encontro, de longe sabe a boca o que lhe espera. O frio de se encontrar em outro endereço, o frio de não encontrar mais os vizinhos (e olha que você nunca imaginou sentir esse gelo nos pés), o frio de ter que olhar o mapa toda vez que sai da casa que não é a sua, que das suas coisas só abriga a mala ao lado da cama.

Aqui anoitece às seis, esfria, o céu fecha os olhos, parece que dorme, então dizemos amém. Tenho meia nos pés, corpo coberto, protejo os lábios dos cortes do tempo, busco energia alternativa quando falta luz natural em cartas como a sua.

Sou como papel branco, anseio pela escrita em minha pele, pelas expressões, o tempo marcando passagem em minhas terras. As rugas no meu rosto são estradas que percorri sem sair de mim. Recebo tuas palavras querendo lançar as minhas, querendo ser peixe no mar, respirar do fundo pela vida que você me dá.

Duplico minhas linhas, alimento a sede que há muito em mim; você sem saber, sem querer, feito música nas horas de intervalo me deixa respirar.

Cada vez mais o passar dos dias te aproxima de dias ensolarados, o verão chegará com as malas, as gavetas cheias, os amores que ficaram do lado de cá.

Anjos pra você. Deus e sua sombra, duas bênçãos. Cada amanhecer, a luz nascendo atrás da nuvem, crescendo em você. Crianças sorrindo, correndo, crianças penteando o seu cabelo, te colocando pra dormir, brincando de pique, puxando a corda pro teu lado. O som da harpa tornando o silêncio um sossego, nunca solidão. A chuva caindo no solo e subindo num cheiro de vida, lembrando uma época em que suspenso no balanço não tocavas o chão; barulho na telha, derrama lágrima na janela, encontro seu rosto intocável. Borboletas, nuvens, coisas na altura da vista, coisas fugidias que a gente esquece de olhar. Que estejam na sua janela brotando num jarro de flor.


Rosemeri Sirnes

segunda-feira, 21 de junho de 2010

MAYRA ANDRADE



Meu espaço hoje é reservado à Mayra Andrade, cantora de Cabo Verde e de muitos outros lugares que passam por ela, por onde ela passa e por onde passeio quando escuto sua voz, sua música.

Depois de algum tempo vivendo uma vida sem sangue, essa minha escrita corre as veias novamente, num mar de águas calmas, vem trazida por Navega . Eu poderia ajoelhar e reverenciá-la por sua arte e todo o bem que faz a minha alma, sem temer a blasfêmia.

Fecho os olhos pra enxergar melhor o que há dentro mim. Ela me encontra os lugares das emoções que nunca senti, eu passeio em mim enquanto ela transita o mundo inteiro. Os álbuns Navega de 2006 e Stória, stória de 2009 revelam a beleza que é capaz um corpo, habitar uma alma devagar, de maneira despretensiosa e grandiosa.

Metade do que sinto eu não sei dizer, a outra metade eu digo assim meio sem saber. Nunca fui boa em explicar por que as luzes se acendem ou por que eu fecho os olhos quando canto.








sábado, 12 de junho de 2010

Santo Sangue


Corre o tempo e o último fio de sangue
O primeiro que recebo em minhas veias
Corre ligeiro e irriga a parte de mim que coagula.

Não só de água filtrada sobrevive um corpo
O sangue é a minha sentença de morte
É a minha extensão de vida em bolsas.

Pessoas percorrem minhas artérias
Vidas presentes, sem reencarnação.
Salvam-me e nem por isso as santificam
Quantos milagres mais serão necessários?

Nasci como um grande acidente
Mamãe recebeu-me como benção
Desde então tenho a vida a correr de mim
Aproximo-me com todo cuidado
Para não me ferir.

Um corte mostra-me a face da morte
O sangue é minha condição, minha sobrevida.
Sigo feito criança a atravessar ruas
Olhos atentos para ambos os lados
A vida aqui parece que só se multiplica em linhas.

Rosemeri Sirnes