terça-feira, 13 de janeiro de 2009





A solidão de alguém que está voltando

Ele voltou ou está voltando. Ao que parece, a cidade afundará um pouco mais com o peso de seu corpo no momento em que descer do ônibus e olhar ao redor e constatar que ninguém o está esperando na rodoviária de tijolos à vista e cinzentos bancos de ardósia.

Ele voltou. Ele não avisou que viria. Quem o estaria esperando?

A cidade afunda um pouco mais com o peso de seu corpo no momento em que desce do ônibus e olha ao redor. A rodoviária está vazia; são oito e quarenta da noite, ele é o único a descer do ônibus e não há ninguém esperando para adentrar o veículo e tomar o seu lugar. Ele ajeita a mochila nas costas, a única bagagem que carrega, e vai ao banheiro. As luzes estão queimadas e o cheiro de desinfetante faz com que ele espirre. Urina com os olhos fechados.

As ruas estão desertas e encharcadas. Ele não avisou que viria. Esteve fora por dois anos. No ônibus, sonhou que viajava no útero de um animal sem asas, uma espécie de lagarto mecânico extremamente ágil, solto na noite mais fria da sua vida. Viajou por vinte e seis horas. Ainda não se acostumou a dizer “ex-esposa”. Dois animais sem asas, subitamente livres um do outro. Ou não. E sim: toda aquela tristeza de fimdepapo.

Ela disse que. Ela disse que queria. Ela disse que queria conversar. Não: ela disse que precisavam conversar. E então emudeceu. Sentada no outro sofá com as mãos unidas sobre o colo, olhando para o tapete sobre o qual, semanas antes, morrera o cachorro, sufocado, diante deles, sem que eles pudessem fazer nada. O veterinário errou. A gente errou. Talvez ela estivesse pensando sobre isso naquele momento. Um erro sobre o outro, um erro instalado dentro do outro. No que não conseguiram evitar, em tudo o que morreu, em tudo o que continuava morrendo. Uma morte sobre a outra, uma morte instalada dentro da outra. E então ela disse:

Eu não agüento mais.

Quarenta e oito horas depois, as malas prontas, a passagem comprada, ela sentou-se na beira da cama, ao lado dele, chorava, ambos choravam, e disse:

Não. Você não precisa ir.

Ele olhou para as malas empilhadas num canto, depois virou a cabeça e fitou o tapete da sala, o cachorro sufocando, e estranhamente pensou que as coisas boas, todas elas, estavam devidamente acondicionadas no cômodo mais arejado de sua cabeça. Vão continuar ali, aconteça o que acontecer. Olhou para ela como se quisesse confirmar isso, mas ela já não tinha olhos, mãos, voz.

Agora, caminhando em direção à casa da avó, sente a cabeça inteiramente vazia. Sem olhos, mãos, voz. Uma sensação terrível.
Ela me ligou, disse-lhe a avó assim que abriu a porta. Contou que você estava vindo. Onde está o resto da sua bagagem?
A senhora não vai acreditar, ele disse, mas eu joguei quase tudo fora.


(Um conto inédito de André de Leones publicado no site Prosa on line. Nascido em Goiânia em 1980, Leones é autor do romance “Hoje está um dia morto”, vencedor do Prêmio SESC de Literatura 2005, e do volume de contos “Paz na Terra entre os monstros”, ambos publicados pela editora Record)

3 comentários:

Fernando Rocha disse...

É um belo conto, tem partes descritivas, que não só ocupam um lugar no papel, mas cumprem a função de transmitir ao leitor a drmaticidade da situação.
Obrigado por me apresentar este autor, que eu não conhecia, é estranho , mas todos sofremos de um certo mal de Brás Cubas, só valorizamos aurores mortos.

Nobilíssimo Gêiser disse...

Olá, Rosemeri! Parabéns pelo blog.

Visite e comece a seguir a página oficial do projeto S.U.P.R.A. Vida Secular!

> www.supravidasecular.blogspot.com

O Profeta disse...

Brotam e correm para o Mar
Os sonhos da tua alma de gaivota
Têm a nudez das águas de uma baía
Neste coração de dor encoberta

Rosa breve em aurora de Abril
Festa da luz no azul do mundo
Semeias sonhos como estrelas no espaço
Guardas apenas um no teu mais profundo


Boa semana


Mágico beijo