quarta-feira, 5 de maio de 2010


PALAVRAS PROSAS

Imagem: Samuel Martins


A você que me desenha sem saber. A você, dono dos meus títulos e da minha voz, do meu sussurro e do meu berro.


Escrevo tão bem quando escrevo pra você; pretensão minha, eu sei, mas é como se eu soubesse dizer tudo, mesmo não sabendo metade. Parece que transpareço. Completamente desnuda, sem uma peça de letra do alfabeto, dos meus empréstimos, dos dialetos. Subo na cama e vibro "era isso o que eu queria dizer".

Não sei cozinhar, não escondo (às vezes acho que deveria me envergonhar). Levanto em minha defesa; sei sim, cozinho o básico, sei fazer feijão, meu arroz não sai papado, mas deixo os tipos de carne para o açougueiro, preparo bem com a receita nas mãos, sai tudo como explicado. Mas o que eu queria mesmo dizer? Ah! Quando escrevo pra você é como se nem precisasse de roteiro, misturo as palavras e nem preciso de tempero, sente-se o cheiro do portão, lá do quintal, e quem duvida do sabor quando o cheiro voa longe?

A minha palavra presta diante do teu olhar, é como se os meus dedos desenhassem um contorno, é como se de aprendiz eu virasse uma exímia costureira de ótimo acabamento, com pontos nos lugares certos.

Um dia as cartas que te envio viram livro, um dia resolvo encaderná-las, ao invés de enterrá-las sobre o teu e o meu olhar.

Olha pra mim, a tua lente é a minha lente de aumento. Minhas palavras todas prosas, todas piscando pra você.

Eu peco, eu sei, eu mordo a hóstia da palavra. Sou totalmente culpada, me entreguei à palavra, pulei a cerca, quis falar de outro modo e misturei-me em outras línguas para dizer sempre mais, sempre demais, demasiadas. As palavras vêm puxando outras e eu não posso controlar esse impulso, só posso obedecer, tecer, ser a própria palavra.


Rosemeri Sirnes





2 comentários:

GS disse...

... eu adorei esta carta! Que dirá o destinatário...

'Um dia as cartas que te envio viram livro, um dia resolvo encaderná-las, ao invés de enterrá-las sobre o teu e o meu olhar.' - concordo plenamente!
Cartas são objectos bem intimistas, reflexos de um sentir 'eterno'!

Lindo fim-de-semana :)
Beijo,

... aqui a nuvem cinza do vulcão islandês nos cobre :(

PS1 O esboço está lindo!

Fernando Rocha disse...

Ao ler o seu texto, lembrei de um disco da cantora Joni
Mitchell, chamado Blue, conta histórias romântica, baseadas na experiência da artista.