quinta-feira, 30 de setembro de 2010




PRESERVANDO O QUE SOBRA DE AR

Foto: Niko


Vejo gente repudiando o preconceito e sendo pego nas mais óbvias manifestações. Vejo gente repudiando injustiça e pondo tudo do avesso. Vejo gente julgando o alheio e reclamando dos olhares em sua direção. Vejo gente que machuca e não gosta de sofrer ataques. Vejo gente que não reconhece a humanidade, o sangue nas veias e nem a própria história. Vejo gente falando demais as palavras dos outros. Vejo gente à toa que diz e nega no instante seguinte, sem que precise a negativa na frase. Vejo essa gente vindo e uma parede atrás.


Rosemeri Sirnes

domingo, 5 de setembro de 2010


MAIS OU MENOS

Eu querendo mais, sou menos. Diminuo minha intensidade para ser maior, como dizem demais as línguas que eu preciso desacelerar...

Eu querendo ser mais, sou menos, porque não entende quando mordo cada dia um pedaço.

Certa vez atirei-me inteira do pé, precipitada, e não era nada macio.

Querendo ser mais, sou menos, e diminuo em ti cada vez mais o tamanho.

Olho cada vez que me chamam e não sei para onde ir, porque sempre quero ir a outro lugar ou quero ficar.

Querendo mais, sou menos, querendo enobrecer nos enlaces do teu peito, quero expandir-me nas ondas do teu oceano e alastrar areia adentro.

Quero ser mais, porque sou exagerada, porque não me dou pouco, porque quando entorno espalho-me por toda a mesa e corro pelo caminho estreito do piso para inundar.

Eu querendo mais, sou menos tua, sou menos eu, e sigo querendo sempre mais.

Rosemeri Sirnes

quarta-feira, 1 de setembro de 2010


A NOITE E ALGUMA COISA PRA DIZER

Foto: Francisco Rangel


Hoje eu acordei uma cama bagunçada, remexida, toda roupa do armário amarrotada. Hoje eu saí de casa toda empoeirada, estante velha na casa abandonada.

Hoje eu acordei querendo ouvir logo de manhã o seu bom dia, parecia que eu não sobreviveria aquelas horas sem esse sol sobre a pele.

Hoje eu queria te dizer que eu sou de verdade, que acordo preguiçosa e não sou dessas de academia.

Hoje eu queria dizer que tenho bad days and today é um desses. Queria te dizer assim mesmo, em outra língua, pra que você achasse graça e não fosse tão grave a ponto de você cogitar desistir.

Hoje eu queria fechar os olhos e estar nos seus lábios e abandonar tudo aqui.

Hoje eu queria trazer nossa noite de sábado, como a noite traz a lua e as estrelas pra ficar muito mais elegante.


Rosemeri Sirnes


segunda-feira, 16 de agosto de 2010



PACTO ENTRE OS MUNDOS

Foto: Marco Antonio

Deus permita que um dia eu entenda esse mal estar que em mim se dá de vez em quando, uma vontade de não ir, uma aversão a certos tipos, um ciúme silencioso que ri entre os dentes, uma loucura que se cria e se cura.

Deus permita que eu diga um dia “eu já fui assim” com total distanciamento.

Deus permita que eu queira do início ao fim e não enjoe quando tudo estiver satisfeito. Deus me dê permanência.

Deus queira que ninguém me exija o amor, para que eu não tenha que inventar desculpas pra ser educada. Deus queira que eu seja eu na maior parte do tempo.

Deus queira que meu caminho seja regado pelas flores mais gentis.

Deus queira que as pessoas entendam o meu jeito, da parte mais sutil ao momento do grito.

Deus queira que eu tenha momentos prósperos, dias nublados e companhia.

Deus queira que a minha alma continue querendo mais de mim.

Deus queira que eu faça sentido, que não falhe como meus conselhos, esses que dedico, mas não sigo.

Deus queira que eu nunca encontre o fim, pra não ter que chegar.

Deus queira que o dia amanheça sempre mais aceso, pra que você tenha sempre um pé de esperança enquanto o sol radiante e o céu azul, pra planejar teu dia seguinte: o passeio com as crianças, a ida à praia, um encontro com os amigos. Parece que é desse jeito que se sobrevive aos dias.

Deus permita que eu sempre encontre a palavra que vem depois dessa, o instante que antecede o ponto final, e faça isso com graça, com olhos vidrados celebrando o quanto eu fui feliz.


Rosemeri Sirnes




quarta-feira, 11 de agosto de 2010


A FOME E A VONTADE DE COMER

Ao amigo Fuca


Eu queria escrever um bocado pra passar no pão, pra um pouco mais de recheio, pra encher boca vazia de desejo, pra matar a vontade que ele tem de me ter descarada, dizendo sempre a verdade. Não quero mais me esconder nas gavetas, em papéis onde preservo o que não gosto começo, meio e fim; nem me proteger em tampas de caneta, tampouco deixar a borracha me subtrair.

Há vezes em que quero ficar quieta e as coisas em mim ameaçam nunca mais parar, como agora; quero contar pra todo mundo que os meus segredos estão todos aqui. Nunca fui dessas mulheres de homens debruçados nos ombros procurando algum lugar ao sol, sempre fui descoberta, sempre fui toda uma luz só calor.

Outro dia Adriana me contou da exigência que ele faz às minhas palavras, à minha conversa que ele precisa respirar. Se eu falasse a qualquer pessoa seria incompreensível, mas ele entende a minha alma ainda que não entenda uma palavra sequer, ainda que não saiba o que eu quero dizer e até ache confuso esse jeito que eu tenho de ser tinta no papel, de me jogar na palavra como se fosse o próprio sentido.

Ele sabe desse fraco de me emocionar diante da chuva, de querer ouvir a música mais melancólica pra doer de verdade e ter espaço de sobra pra me sentir feliz completamente. Quase assim, ele confessa o choro sem vergonha diante da coisa mais insignificante; confessamos um ao outro porque não confiamos em alguém sem pecados e um lugar que não permite olharmos nos olhos.

Eu queria escrever uma coisa bonita, laço de fita enfeitando o cabelo das meninas, vaidosas todas elas, buscando um gracejo dos meninos; queria ser feito boca suja dizendo eu te amo, sem jeito, nem cerimônia; queria escrever porque tenho pouco tempo, porque não tenho nada seguro, porque não posso deixar de dizer antes de dormir.


Rosemeri Sirnes


sexta-feira, 23 de julho de 2010




VIVENDO O AMOR



Eles se amaram de qualquer maneira, à vera

Qualquer maneira de amor vale à pena
Qualquer maneira de amor vale amar

(Miltom Nascimento/Fernando Brant)



Posaram as mãos sobre a outra, o corpo sobre a cama, as chaves sobre a mesa do apartamento entregue na terça.

Eu digo que amo como um gesto que me impede a distância. Nunca disse que os meus abraços são todos eu te amo? Fique sabendo.

Ricky, você é tão bonito que tua beleza me empresta, e agora eu sei que esse olhar todo brilhante do amor diamante tem nome de gente.

Thiago, vejo a beleza no espelho dos teus olhos e reconheço um irmão na sorte grande que você tirou.

Portas abertas. As caixas começam a chegar, os móveis, os presentes, os detalhes da decoração, a geladeira, a máquina de lavar. O sonho ganhando corpo estende-se na cama dividido em dois.

Nas mãos a aliança, sem amarras, só a mais pura vontade. Quando o Ricky multiplica a existência das vogais nas palavras confessa todo o amor que sente e me faz feliz presenciar a fé dessa união.

Parece mentira que o conheci outro dia. Menino, eu tenho idade pra ser tua tia e você deixa a casa antes de mim!

Como as coisas gigantes ganham espaço em mim.

Você é bonito desde a alma, desde o que não conheço até o que me confessa.

Você nem acredita como é tamanha a felicidade quando alcanço mesmo daqui o teu sorriso, quando você me conta tuas coisas por não caber em si de tanta alegria e me chama pra fazer parte disso.

Portas fechadas. Sossega o corpo ansioso que há duas semanas espera o encontro todos os dias. Chegou a hora da partilha dos espelhos, da cama, do lençol, das contas. Chegou a hora de ser feliz do lado dentro e do lado de fora.


Rosemeri Sirnes