terça-feira, 30 de dezembro de 2008




Hoje minha tia ligou no meio do almoço perguntando a cor da roupa que escolhi para a passagem do ano, respondi que seria bran-, ela me interrompeu na primeira sílaba dizendo que seguindo cálculos de alguma revista fajuta, levando em conta a data do meu aniverśario, eu deveria vestir a cor vermelha. E agora? Pensei. O ano de 2009 nem começou e já está perdido, nenhuma peça intacta no armário, não desta cor. Ela disse que tá valendo um jóia com a pedra rubi. Pior ainda! Oh Céus! Fiz quase tudo tão direitinho este ano, não é justo.
Resolvi enumerar minhas benfeitorias para ver se os deuses reconhecem o meu esforço e não me sacrificam pelo descuido na cor das vestes.

- Não matei, nem enganei, o que já é um bom começo; intenções não podem ser consideradas, o fato é que eu me mantive calma e inclusive, administrei todas as minhas brigas internas, essas sim, são bem piores do que todos os tapas e revides que deixei de dar.

- Amei compulsivamente, a árvore da esquina, a água que sai da bica, as plantas do quintal, a bagunça do armário, amei até quem não merecia, amei concreto e abstrato.

- Não me economizei, nem um tostão, tenho bolsos furados para as minhas razões, para as minhas resoluções. E como diz o rei “se chorei ou se sorri o importante é que emoções eu vivi”.

- Bebi moderadamente, nenhum porre registrado, nenhuma grande loucura, além da de ir contra todas as certezas. Perdoem essa pobre menina míope. Se bem que não provoquei nenhum acidente ou atropelamento, isso deve ser considerado.

- Perdoei, perdoei... só por isso já valeu o ano inteirinho. Eu chorei uma tarde inteira. Diante da minha mãe mostrei minha face mais enfraquecida, que em 25 anos ela nunca havia conhecido. Eu perdoei quem me fez chorar naquele dia, o choro mais doído de todos.

Decerto estou aqui cometendo erros da primeira linha à última. Minhas loucuras nem sempre foram benéficas, meus impulsos nem sempre foram contidos, eu não fiz quem merecia feliz; mas vivi desde a luz do nascimento com dedicação, querendo estar viva, entre erros e acertos e as melhores intenções.

Se não funcionar, pelo menos chego em 2009 com a bagagem mais leve.

sábado, 27 de dezembro de 2008

Quando o amor faz sinal de que não vem


Enquanto você dorme eu varo a madrugada e acho que vou encontrá-lo no bar da reserva.

Como eu sempre quis estar aí, travesseiro do seu lado; por tanto querer, sempre me afastei.

Sempre quis um amor fulminante, um amor que surgisse, consumisse e morresse, tudo assim em 24 horas, um amor com respiração ofegante, mãos nervosas, um amor cigarra; um amor que vivesse pelo prazer somente, e então estaria resolvida toda essa matemática de encontrar, de perceber, de tocar, de fazer de conta, de dar-se conta; um amor que morresse após o gozo, este seria então o amor ideal; sem choramingos, sem falta de ar, sem ansiedades e principalmente, sem planos e previsões de longo prazo.

Mas como eu queria que você estivesse ali, bem na mesa em frente esperando que lhe mordesse a poesia na orelha, esperando minhas ordens sem o cinto.

Você me reconheceria, você não teria dúvidas, tua certeza viria do meu sapato sem salto, do meu olhar lançado em flecha, a tua certeza viria das minhas mãos tocando a face, afagando a nuca, das mordidas no lábio inferior.

Enquanto eu passeio nesse mar de incógnitos, você anda solto na minha imaginação, você se afasta e eu nunca vou lhe encontrar no banco desta praça, você não virá tapar-me os olhos e pedir que te adivinhe.

Você não virá.

Enquanto você espia a moça de saia curta e decote que acabou de subir, o ônibus passa por mim.

Você não virá.

Enquanto eu faço a cama, você planeja a pŕoxima investida.

Você não virá.

Enquanto eu aparo as arestas, você exagera.

Você não virá.

Enquanto preparo o jantar, você acelera e capota

Você não virá.

Enquanto eu escrevo, você apaga.



Rosemeri Sirnes

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008


Quem vai entender quando eu respiro fundo?
Quem vai entender quando as palavras estão todas presas na garganta?
Quem vai entender minhas pausas, meus delírios?
Quem vai entender o meu medo desta vez?
Quem vai entender a minha precaução?
Quem vai entender meus sinais?
Quem vai e não volta mais?
Quem me diz a medida exata?
Quem me alerta os perigos?
Quem desafia comigo um duelo?
Quem paga pra ver?
Quem arrisca a vida inteira?
Quem me tira pra dançar?
Quem estará lá quando eu voltar?
Quem sustenta o telhado da casa?
Quem se fará necessário?
Quem se fará dispensável?
Quem habita o lado oculto de nós?
Quem sopra em meus ouvidos tantas dúvidas?
Quem me faz questionar cada tom de voz e palavra?
Quem, na verdade, toma as rédeas?
Mas afinal, quem é que manda aqui?

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008


As palavras dizem, significam e fazem pensar, e nem sempre isso tudo é a mesma coisa. Nem sempre desvendo a vírgula, as reticências, nem sempre leio o que os substantivos dizem, nem sempre a boca tem boas notícias, nem sempre eu quero o sentido, as subtrações, as adições, nem sempre as fórmulas matemáticas facilitam. Às vezes eu quero compactuar com o silêncio, às vezes eu quero nada com a voz, às vezes eu quero apenas a pausa pro beijo.



domingo, 21 de dezembro de 2008


Frases que você evitaria se tivesse juízo


Sinto a sua falta e digo claramente com todos os “as”, com todos aqueles receios embutidos por conselhos alheios e coragem suficientes para dar voz ao sentimento.


Digo eu te amo e desconfio dessas letras sopradas feito bola de sabão. Desconfio de mim pela precocidade com que as coisas começam, tenho receio do prazo; por isso faço compras observando datas de fabricação e validade. Desconfio de você também, com que expectativa recebe minhas palavras.


Sem tomar muito o seu tempo, indo direto ao assunto: eu queria mesmo que você fizesse as malas e fosse embora. Ando tão cansada de meias palavras.


Bem, sem querer importunar, mas você poderia, por gentileza, fazer de conta que é meu companheiro e agir como tal?


Só sexo, sexo, amor, só amor, tudo junto, um a cada tempo, tudo separado, a gente não sabe mesmo lidar com os dois juntos.


Revirei sua carteira, verifiquei tuas ligações e mensagens, os gastos do cartão de crédito e ao mesmo tempo eu não queria saber de nada. Será que você me entende?


Somos apenas bons amigos, podemos tudo; só não me cobre finais de semana.


Sabe, nada é como antes; sei lá, eu sabia que isso não duraria muito tempo.


Transamos e tudo o que te importa é saber se eu vou ligar amanhã.


Ah! Amanhã eu não volto, tá?! Só pra você não ficar esperando ou se perguntando se foi culpa sua. Nada contra.


Lidar com você tá me dando nos nervos.


Dá pra você parar de me ligar ou eu preciso mudar o número?


Me dá uma chance.


Quero beijos e adjacentes.


Tenho vontade de te mandar pr'aquele lugar, mas a minha educação não permite.


Se eu te amasse da forma que eu te odeio, acho até que dava casamento.


Toda vez que silencio é porque não quero que cobres de mim nenhuma responsabilidade.




domingo, 14 de dezembro de 2008


EXPLOSÃO DO AMOR

Todas as manhãs você levanta, abre as janelas e diz que já é hora de acordar. O sol atravessa a coberta e me cutuca. Você sempre soube do meu mau humor, por isso seu bom dia me beija sorrindo e eu não consigo, senão, devolver o mesmo gracejo.

Quando resolvemos morar juntos achei que não tinha vocação para dividir essa vida em dois,
mas eu sempre guardei a sua fatia.

Meu bem, agradeço por subverter minhas teorias desde o primeiro momento; inclusive as de Feng Shui, eu achando que tudo girava em torno de uma disposição de móveis; você soube me contrariar, dando nova cara a casa toda semana, dando o nosso sentido. É uma delícia ter teus pés aquecendo os meus quando a coberta cisma em tender para o seu lado.

Agradeço por entender que a tv ligada me incomoda quando eu quero dormir; sem pensar como minha mãe, que tudo é psicológico, ou pensando, em silêncio compreensivo.

Quando você veio trazendo o sofá de dois lugares, a geladeira, o microondas, o espaço era pequeno e fomos nos espremendo, nos livrando dos excessos e nos adaptando, você me fez entender de superflúos, você controlou as minhas extravagâncias, você me amou acima de tudo e a minha casa foi tomando ares de nossa.

Desde o início você sabia que eu não era nenhuma chefe de cozinha, nem tinha vocação, e foi destrinchando receitas comigo; nos divertimos fazendo bolos solados e comidas insossas e morremos de rir quando achamos que tudo vai dar certo até a primeira colher na boca.

Eu te amo por você entender que às vezes respiro melhor sozinha.

Eu te amo pelas missas de domingo que você foi sem me cobrar companhia.

Eu te amo por beijar-me o pescoço e pedir pra deixar a louça para amanhã.

Eu te amo por ser meu companheiro de fato, sem exigir regalias.

Eu te amo pelos almoços de domingo dos quais fazemos questão, pela mesa posta, pelo olhar que me lança pedindo a sobremesa.

Eu te amo porque você abraçou não só a mim, mas a toda minha família.

Eu te amo pelo entendimento e compreensão de cochilos à tarde.

Você não se assustou quando eu disse que você era o homem da minha vida, e eu soube disso muito antes de pronunciar todas as sílabas.
Nosso amor de banco de praça, foi tomando as ruas, vielas, passarelas, nosso amor foi se mostrando, ganhou a igreja e os meus anos. Agora nosso amor ganha agregados, o nosso amor começa a dar frutos e eu ainda não me acostumei a tanto amor multiplicado.

Eu te amo pela vida que traçamos, pelo presente e pelo futuro que espelhamos.



Rosemeri Sirnes




sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008


Shiiiii...


E então o silêncio tomou a sala

Estendeu-se pelo tapete

Em vento forte bateu a janela

Forrou-se veludo o copo ao chão

O silêncio calou o sinal de ocupado

Varreu as folhas do quintal

O silêncio senhor impaciente

Foi e voltou de canto a canto da sala

O silêncio pairou no ar.



Rosemeri Sirnes



quarta-feira, 10 de dezembro de 2008



LEI DA COMPENSAÇÃO

" Meu bebê ainda não nasceu, não plantei um broto de feijão sequer, mas ele é esperado desde ontem, desde antes, desde quando a dúvida não teve mais vez."

Sabe aquelas horas em que o telefone toca, o relógio dispara em suas aflições de acabou o tempo e todos te solicitam, desde a louça na pia às plantas no quintal? Pois é...semana agitada.

Chego em casa e o corpo cansado atira-se no sofá em frente a porta, disposto desta forma estrategicamente. Meus pés atiram o tênis longe, querendo piso gelado.

Dessas invenções todas, que na época só achava possível nos desenhos dos Jetsons, só não deram jeito de inventar um chuveiro portátil; tudo o que eu desejava. Como não sou Feiticeira nem nada, dou mais alguns passos rumo ao box. Nessas horas eu me pergunto por que não escolhi uma roupa mais leve, vestido e roupa íntima, seria no mínimo prático. Tenho questionamentos até amanhã, e depois de hoje, amanhã será outra vez, aí já viu, essa coisa não tem fim. Meu botão de acionamento automático está cada vez mais obsoleto.

De repente em minha direção, uma menina cambaleante nos passos de seus dez meses, meu pé de hamburguer em seu vestido florido de babados; ela ali sorrindo sem dentes funciona como espinafre do Popeye.

Depois de um rápido banho, me espalho pela sala com seus brinquedos para brincar de panelinha, minha filha me serve doçuras em suas xícaras de chá e ainda pergunta se eu quero mais. Logo enjôa, evidenciando o traço da mãe, corre para o quarto em busca de outros brinquedos; eu, de longe, prevejo a avalanche, a tsunami no quarto. Peço a Deus, dei-me força e Ele aplica mais uma injeção de ânimo.

Jantamos praticamente o mesmo prato. Divirto-me com suas exigências de aviãozinho, divirto-me em vê-la lambuzada com papa que eu tento limpar com a colher, orgulho-me em tê-la princesa do meu reinado. Quando mesmo que essa fase passa? Deixa estar!

Hoje em dia meus livros de cabeceira são todos literatura infantil, meu bebê não dorme se não lhe conto uma história; muitas vezes relato três linhas e estamos ambas tombadas. Acordo de madrugada na caminha miúda com reclamações da coluna e ela dorme fazendo biquinho, toda calma, toda minha menina e olhos do pai, fico ali babando por um tempo – coisa que eu não canso de fazer – e vou reinar na cama sem princesa.

Meu sono nunca foi tão curto e também nunca estive tão feliz. Essa é a lei da compensação.

Rosemeri Sirnes





terça-feira, 9 de dezembro de 2008




Fragmentos, retalhos, fiapos e afins


E se você não tem mais a quem culpar,culpe a crise. Palavra, palavra, depois de Eugênio eu aprendi a esperar. Tudo na minha mesa, tudo farinha do mesmo saco: a crise, a palavra fugida e Eugênio.

“Fragmentos são pedaços de mim que eu observo pela fechadura, são retratos da vida alheia que eu costumo tirar da janela.”

“Percebo que de tempos em tempos, ainda não calculei exatamente de quanto, passa uma maré de sorte por aqui.”


“A vida do outro eu aprecio sem invejas, a vida do outro me dói porque enxergo nele o parentesco”

“Fiapos não podem ser arrancados assim sem estratégia, corre-se o risco de levar a roupa inteira.”

Rosemeri Sirnes

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008


“...Escrevo isto só para não perder longamente o costume. Não é mau este costume de escrever o que se pensa e o que se vê, e dizer isso mesmo quando se não vê nem pensa nada...”

(Machado de Assis – Memorial de Aires)




domingo, 7 de dezembro de 2008





Amigos que pousam em meu terreno,

A terra aqui é fofa, macia feito meu tapete da sala. Pode entrar que o cachorro não morde. Na casa tem um sofá de quatro lugares e almofadas espalhadas pelo chão tão confortáveis quanto. O café sai sempre de manhã e à tardinha, com biscoitos amanteigados e uma conversa de fazer crochê.

"Eu, que sempre ao final de cada carta escrevia grande abraço, fiquei outro dia pensando no ônibus, querendo fugir de pensamentos insistentes e da dor de cabeça que esses me causavam; se não seria melhor escrever forte abraço, esse que de fato eu sentia vontade, que possibilita palavras vindas de todas as partes."

"Eu queria dizer eu te amo e a boca reproduzia sons que ele não entendia. Eu sempre achei que fosse esse problema que tenho em usar metáforas, sinônimos que colho nos livros da estante, tempo depois percebi que não falávamos a mesma língua."

"De manhã a claridade toma conta da sala, saio à rua em busca do jornal e planejo promessas que não se cumprirão ao longo do dia. Fábio conhecia-me mais do que eu a mim mesma, ele sempre me pedia para não fazer planos, até então eu não sabia que ele já tinha o bilhete de volta."

"Dormi de caprichar, nada em mim respira cansaço, só a minha cabeça que funciona como maria fumaça, pensando nas estratégias do autor. A teoria parece nunca estar a meu favor, vou pisando em outros terrenos, vôo longe..."

"Estou assim, assim... como dizer pra ficar palpável? Como criança lambendo o vasilhame do bolo que acabou de ir ao forno."

Rosemeri Sirnes

sábado, 6 de dezembro de 2008


ECOS DE ADEUS

Eu sou tudo e não sou coisa alguma, me desfaço leite em pó na água.

Eu pretendo. A faculdade está trancada, meu filho já nasceu e o pai foi embora.

Eu sou feliz. A lembrança de você carimbada, enquanto aviões sobrevoam exibindo faixas de “volta” que só a minha miopia enxerga . O telefone há tempos não toca e choro com a boca aberta, encolhida na cama, como se tivesse sido atacada por uma cólica das grandes.

Eu planejo. Os papéis estão todos na pasta, esperando uma ordem de prioridades. Certas providências eu deixei pra trás, certas coisas eu desisti mesmo, e ponho a culpa no tempo.

Eu vou ler. Compro livros, aceito empréstimos, interrompo Machado e não folheio a última página, não passo do prefácio.

Eu estabeleço metas. Um futuro, todo prédio em construção. Nada sai da planta. Quero o dinheiro de volta, vou me furtar.

Talvez seja bem esse o momento de voltar, de vestir os sapatos, arrumar as malas e engolir meu orgulho e o vinho numa tacada só. Há quem diga que nada é por acaso; reforço, a nossa briga foi providencial; talvez eu precisasse mesmo ouvir tuas ofensas, esse foi meu ponto de partida, meu impulso, o empurrão.

As dores que carrego completas de veracidade, me atacam em latejantes, mas hoje, só hoje eu consegui ser racional.

Pai, depois de cinco anos de tempo efetivo e uma década corrida em mim, venho lhe pedir perdão. Você sabe bem que me comunico melhor por escrito. Quando estiveres nesse ponto da leitura, apontarei na esquina com a mala cheia de saudade e já diante de ti experimentará o abraço na tua medida, nem apertado, nem frouxo e toda dor dissipará. Fará dia aqui e no Japão.



Rosemeri Campos



sexta-feira, 5 de dezembro de 2008



TARDE SEM CAFÉ E PÃO PETRÓPOLIS


Depois de conversas confusas, dores de cabeça e um piriri relatado em segredo, que agora divulgo sem autoria; chegamos a lugar nenhum. Na mesa grande, livros e papéis por todos os lados e uma explicação incompreensível. Estamos no meio do caminho. O meu dia de hoje salvou-se por um série de fatos, pesquei uns peixes miúdos, mas não contribuo com a extinção, estou bem servida com meus bocados.

Hoje não vou me estender, deixaria as linhas acima enciumadas, sigo a premissa “não faça com os outros o que não gostaria que fizessem com você” e me calo.

Não é nada disso. É falta de inspiração mesmo, é preguiça e sono. Vim habitar as linhas, vim de qualquer forma, para que não sinta falta.

Minha amiga e mais nova mamãe disse-me há duas semanas que não consegue deixar a filha chorar “corta o coração”, palavras dela. Acho que a minha dinâmica é bem essa; com uma diferença, aqui ninguém chora.


Rosemeri Campos

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008



AS RAZÕES DA MINHA VISITA

Venho porque gosto, não para que tenhas a obrigação de me retribuir cada gesto. Venho pelo apreço que tenho por sua preocupação em comprar flores todas as manhãs e dispô-las sistematicamente pela sala e quintal. Ao contrário da minha mãe, discordo que o melhor lugar para as flores é o cemitério, mesmo assim as evito no meu canteiro, percebo que as flores trazem muitas dores à minha mãe, por mais vivas que sejam, para ela, sempre murcham. As podo em ação de respeito.

Venho todos os dias pisar neste tapete macio, aqui meus pés sentem-se em casa, aqui eles ficam descalços de mim.

Venho aqui porque a tua casa sorri e me chama por psiu quando eu passo distraída. Chego a pensar que tua casa tem imã, chego a pensar em besteiras ancestrais.

Amo o teu capacho me dizendo bem-vindo. Da entrada aos quartos tudo me saúda. Teus potes de banheiro e as manchas de vaca na parede que eu acho uma graça. Teus móveis modernos, que me convidam a todo momento com solicitações de portas abertas.

Venho aqui por ti, pela tua casa de adesivos na parede e móbiles multicoloridos.

Tenho portas abertas como a sua, uma caixa de borboletas na cabeceira e espelhos duplicando cada incidência.

Venho porque a alegria me traz pela mão e eu venho sem birra.

Entro sem pedir licença, porque quando peço, você diz para eu parar com essas formalidades. Você me deixa à vontade e pede que eu não repare a bagunça e eu digo que eu vou reparar tudo para que nunca mais esqueça, para que por mais longe que eu esteja, leve tudo em mim.

Venho, não só porque você não passa a chave na porta, venho porque você diz que a sua casa é a extensão da minha e é assim que eu me sinto.



Rosemeri Sirnes

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008



A VERDADE DE QUANDO EU MINTO
Foto: Luis Felix

Eu não sei o que escrever para você, porque, de fato, o que tenho aqui é pra te oferecer. As palavras eu escolho como quem escolhe os feijões que serão servidos no almoço. Este espaço eu preencho todos os dias na esperança de que teus olhos enxerguem aqui um motivo qualquer e o convença de ficar. Não me bastam as cartas emitidas, os recados empurrados pela fresta da porta, os recados deixados na caixa postal, quero divulgar esse amor, com meu alto falante. Minha voz rouca nunca será capaz de alcançar tal nota.

O que eu digo para você quando minto, quando as minhas pernas tremem, quando guaguejo, quando o coração faz nada além de quase pular da minha boca para a sua, não chega a metade dessa verdade estendida tapete na corda, meus varais completos.

Eu não começaria a escrever se não fossem teus os motivos. Tua mão esteve junto a minha desde a primeira letra, cobrindo os pontilhados, mas você nunca vai saber; porque eu minto.

Quando envergo a árvore e faço parecer que tudo aqui é sombra, eu disfarço minha intenção; assim como naquele dia em que eu anunciei que a minha ligação era só pra saber se estava tudo bem, mas na verdade, eu queria uma palestra de 2 horas, eu queria tua atenção dispensada, ficar no chão por horas, jogada em atenção. Eu queria que tuas palavras me pegassem pelo braço, me algemassem, mas elas respondem, concordam e desligam.

Tudo o que me atiça contraria.

Essas variações, esses sobrenomes, essa mesa para oito, são ecos do meu silêncio que cochicha: é pra você.


Rosemeri Sirnes


segunda-feira, 1 de dezembro de 2008



NÃO FOSSE...NÃO SERIA

Foto: Angelo Sereno



Não fosse aquela mordida vadia em minha orelha

A intenção de contar-me um detalhe

Não fosse o recado soprado

O segredo seria nós dois

Não fosse a tua língua

Pescoço à baixo

Suas mãos avançando entre minhas coxas

Arrastando as cortinas

Abrindo as janelas

Não fosse o meu engano esquecimento

Não fosse a mão no pescoço arrepiar-me os pêlos

Esse olhar de me enganar e levar pra cama

Não fosse todos os registros de autenticidade

Essa marca no pescoço

A gola alta em pleno verão

Não fosse a minha vontade e a sua

A aliança ainda estaria no dedo

Os vasos não teriam sido atirados

O espaço vazio estaria tomado

A traição não teria me matado

No gozo do estourar da champagne


Rosemeri Sirnes



domingo, 30 de novembro de 2008




Estou com fome e uma preguiça faminta me consome, um cansaço de fazer quase nada e dor na batata das pernas causada por sucessivas subidas de escada, o espelho anda atuando como meu inimigo, a vaidade em baixa, expondo minhas unhas e cutículas. Estou com sono e é bem provável que não inicie hoje a leitura do Noll. Hoje parece domingo, e é. O domingo pensa que me engana, com essas historinhas pra boi dormir, pensa que me distrai; entendo logo suas armações quando o meu bem diz que amanhã é dia de branco.
Amanhã, tenho certeza, o dia vai me descascar doce e vai me sugar inteira, não só o dia como a semana que já bate os pés no chão como mãe, pronta para me dar uma coça. Partirei agradecida pelo dia de seguinte, aguardando sábado, meu namorado, sei que ele estará pronto com beijo nos lábios, e ainda assim, tardará. Sexta sogra dirá para não me preocupar; amanhã é logo ali, dirá que ele me ama e descansará minhas preocupações antecipadas. Estarei eu, disposta outra vez para novos domingos.

sábado, 29 de novembro de 2008




LÁPIS DE COR



É daquele sorriso de bom dia que eu sinto falta, todas as manhãs aquele rosto de covinha me desejando um dia inteiro de previsões a favor, sempre a mesma saudação diferente. Ele quebrava o gelo da manhã, as minhas pausas de uma hora, o meu café silencioso, ele mordia as bolachas e sorria, propositalmente e sem querer ele bagunçava o meu sossego. O meu sossego mau humor que ele interrompia cheio de graça me chamando pra brincar.

Desde que parti nessa viagem sem fim pela vida adulta, não tinha mais paciência para desenhos animados, para as risadas do rabugento, as brigas de Tom e Jerry, as corridas de Penélope. Ele me fez sentar e eu calei todas as reclamações assistindo pica-pau, seu dvd de 50 melhores. Ele me enchia de graça na altura de seus 6 anos, dizendo que metade dele queria passear comigo e a outra queria brincar com os amigos.
Ele pintava os meus dias com lápis de cor e giz de cera, meus cabelos de azul e nunca esquecia dos óculos, ele sabia exatamente as minhas deficiências. Como pode a inocência ser capaz de tantas coisas, saber a fórmula exata sem dosar?


Menino Léo, meu primo mais novo, a saudade que tenho de Manaus é saudade de você.

Rosemeri Sirnes

sexta-feira, 28 de novembro de 2008




DA SÉRIE : As coisas que deixei de dizer


Bem,

Tá tudo ajeitado, minhas blusas de um lado, suas camisetas do outro e espaço de sobra para nós dois.


Até a noite


Edu,

Meu recado tem a marca do beijo que eu deixei para não te acordar.


Ju,

Bandeira branca amor.

Te amo


Nega,

Suas garras invisíveis. Essa é a única explicação para que me mantenhas aqui tão seu.


Mulher,

Que bolo de fubá é esse?! Tá de ganhar teus beijos.

Beijo


Amor,

Um bom dia da noite de ontem.


Rô,

Obrigada!


Junior,

Desculpa!







quinta-feira, 27 de novembro de 2008


Benzinho,

Tem volta não. A porta está fechada e dessa vez não deixei a chave no vaso da samambaia.

Carinho maior,
Seu


Amor,



Foi bom sim, de fato, mas amanhã passo sem falta pra buscar o que ficou de mim.


Com todo carinho,
Rose

Arte: Peter Blake

sábado, 22 de novembro de 2008





À minha grande amiga Natasha

Ao som de Chico


Ela entristece ao ouvir Chico Buarque, a música toma o gosto que lhe puseram à boca. Ela enobrece quando escuta Chico Buarque, a lembrança permeada de digitais que o corpo evidencia. Ela dança ao som de Chico Buarque e o samba, lhe foge a memória de passagens ardidas. Ela impõe sua voz em Chico Buarque ela é a própria mulher impressa na letra, ela esbraveja, por comiseração, pela coragem e pelo limite. Ela admira as mulheres de Chico, suas faces de batom borrado, seus vestidos esfarrapados e meia-calças desfiadas. Ela ama em Chico essa verdade que lhe põe o espelho adiante, essa sinceridade compartilhada do homem que calça o sapato de salto alto e vira o pé, que veste a saia e repuxa para não subir além do permitido, que veste o sutiã de aro e bojo para impor os seios. Ela entende de Chico Buarque e sua partitura mesmo não sabendo ler, porque ele a entende em todas as suas curvaturas. Ela fala de Chico com fascínio e a mesma paixão da mulher que se arrasta, arranha e agarra os cabelos de seu homem. Chico a faz sorrir, porque nem tamarindo é so azedo. Chico Buarque é personagem de sua monografia, agora é a vez dela se colocar no lugar do homem.

Rosemeri Sirnes

quinta-feira, 20 de novembro de 2008


Nada sairá de importante neste dia, nem a pintura molda as palavras que saem sem ânimo. Não haverá uma só frase de efeito que diga que valeu a pena, que nada foi em vão. Escrevo hoje para preencher espaço em branco, mais por obrigação do que inspiração. Tento fazer com que uma palavra puxe a outra, mas meu vocabulário anda escasso. Deixo espaço em branco para você preencher minhas lacunas, ser a continuação das minhas reticências, ditar o tema, criar o título. Deixo uma fresta, deixo a porta entreaberta, deixo as chaves escondidas, você sabe onde. Ainda há espaço em mim, e a pausa do tempo a seu favor.


Rose


Foto: Miguel Afonso

domingo, 16 de novembro de 2008


Farto e faminto

O veludo pêssego é o que me aproxima de você. Lembro que todas as manhãs descascava e punha pedaços suficientes para alcançar-te a boca. Sentia como se do meu amor você provasse e com isso viesse acolher-me em seus braços com a mesma fome que tinhas pela fruta preferida.
Pela manhã, durante seu quinto sono, silenciava a minha presença e saía na ponta dos pés; colhia na banca do feirante a primeira safra do teu alimento com minúcia , com exigência. Esquecia-me. Forrava a mesa e servia o teu apetite. Alimentava-me de você. Quando decidistes deixar a mesa sem pedir licença, fiquei na mais completa miséria.

Rosemeri Sirnes



Foto: Nuno Sacramento

sábado, 15 de novembro de 2008


Surpreende-me esse ponto e cruz, esse alinhamento, essa habilidade com as mãos. Gostaria de tecer poemas, prepará-los para o vestir. Não tenho nem nunca tive habilidade com as mãos. Minha avó bem dizia de moças prendadas, mas eu nunca quis ouvir. Tenho palavras e não sei como cruzá-las em nó perfeito, sei sim, entrelaçá-las de modo simples, por isso preparo bordado em pano de prato. Faço monogramas também; é o que eu faço de melhor, cruzar minha letra na sua. Essa habilidade vovó não precisou me ensinar, sou autodidacta.

Rosemeri Sirnes



Fotografia: Ubiratan Maciel de Oliveira Nunes






sexta-feira, 14 de novembro de 2008



Quando o amor não faz de conta


Quantos agrados teu dinheiro me compra
E eu tento com a minha poesia dar-lhe o dobro em troca
Mas sei que não entendes quando digo do amor de bumerangue
Sei que descobres o bolo sem cobertura achando que é esse o confeito
Você me ama sem estardalhaço
Sem que eu precise assinar o roteiro
E colocar seu nome nos créditos
Nos amamos onde a onda faz espuma
Depois que a bravia já tocou a pedra
Quando a macia rola pela areia


Rosemeri Sirnes

quinta-feira, 13 de novembro de 2008



SAINDO DA SOMBRA


Ninguém me fere mais do que eu
Nenhum rei manda no meu pedaço
Serei sempre autônoma
Dona de minha própria dor e alegria
Mestre sábia dos meus questionamentos
Detentora das dúvidas
Não haverá quem me ponha nas mãos
Pousada
Pedindo satisfações

Não deitarei no divã alheio
Nem pedirei conselhos a quem vive o mesmo erro
Serei responsável por todas as catástrofes e tragédias
Dentro do meu território
Sou eu mesma quem planta misérias
E colhe farturas
Sou eu quem passa na rua e procura saber
Sou quem engana a mim
Quem trapaceia e entrega os pontos
Quem confunde e conclui
A segunda chance e a porta de entrada
Sou quem entorpece e vicia
Ninguém subirá em meu topo cantando vitória
Sou eu quem decide o que fica
O que tarda e o que amanhece
E por não me isentar
Pago todos os impostos

Rosemeri Sirnes



Fotografia: Aleksandr Batura


terça-feira, 11 de novembro de 2008




Hoje eu terminei de ler o livro “A insustentável leveza do ser” de Milan Kundera. Constatei que todas as mulheres estão em Tereza, inclusive Sabina. Tereza está por todos os lados e tenho raízes suas em mim.
Hoje eu lembrei que tenho que ir à livraria trocar o livro que veio com a página solta. Não posso ser tão flexível, tão subserviente.
Hoje fiz limpeza no quarto, recolhi as roupas, lavei-as, organizei os livros na cesta, por falta de espaço na estante. Me orgulho dessa habilidade de pôr tudo em seu devido lugar.
Hoje você se foi. Posso colocar gelo no uísque, fechar a porta e escutar música alta no meio da tarde.
Hoje eu lembrei que preciso fazer uma compilação dos meus gostos. Há quem confie.
Preciso manter-me de pé apesar do cansaço.
Preciso tirar o pó das malas e planejar minha próxima viagem.
Preciso colocar na ponta do lápis o que é realmente importante.
Preciso ter uma direção e comprar o vestido da festa.
Preciso de carona, enquanto não sai a carteira de motorista.
Preciso devolver livros e dvds. Não plantar desconfiança na cabeça alheia.
Preciso lembrar de não esquecer compromissos que digo que sim e sei não.
Preciso esquecer para não estimular ansiedade.
Preciso calar para não dizer o que nem eu gostaria de ouvir.
Preciso ser menos , no momento em que me agiganto orgulhosa por não mais sentir.
Preciso tirar o seu travesseiro da cama, acabar com a obsessão pelo cheiro.
Preciso entender que não tem volta.
Preciso recolher as roupas do varal, o céu diz lá de cima que vai chover.
Preciso me acostumar a comer em prato raso.
Preciso parar o rádio em uma estação. Preciso ser mais estável.
Preciso ajeitar as coisas do meu jeito, ser auto-confiante.
Preciso abrir os olhos para o que está adiante.
Preciso seguir os conselhos da mãe.
Entender de uma vez por todas a frase “ se um homem trata mal a mãe dele, tratará você tão mal ou pior”
Preciso descansar as idéias.
Preciso escrever para lembrar de todas elas.

Rosemeri Sirnes

segunda-feira, 10 de novembro de 2008


DE BARRIGA

Sinto fome por dois e uma ansiedade que me morde o calcanhar. Amanhã saberei o sexo e o coração retumbante baterá por nós.
Ultimamente choro por qualquer motivo, se a maçã está magoada, se o ovo escapuliu e espatifou-se no chão, se alguém me diz não; acho que grávida tem dessas coisas...se bem que desde que assumi esse estado, os carinhos são exacerbados, pessoas estranhas falam com a minha barriga e estimam minha gravidez como se fossem da família; só ouço a palavra “não” quando meu marido diz: "não, pode deixar comigo. Hoje eu cozinho". Tenho que confessar, me aproveito da situação.
Meu marido encarou a minha barriga de fato, ele está grávido comigo, me acompanha nas consultas à minha obstreta, se interessa, quer saber e se preocupa mais do que eu com as coisas que como.
Minha barriga assim como meus pesinhos a mais começam a desfilar.
Eu que até então acreditava que só era possível dormir de bruços, constatei que a situação faz a posição, e hoje dou razão à minha avó quando dizia que tudo em mim é psicológico.
Levanto a noite inteira mais do que de costume, para fazer xixi, gostaria muito de saber o que muda no nosso organismo para estimular essa profusão de água.
Tenho me acostumado a tomar leite, não tomava desde que mamãe me deu o direito de escolha. Agora meu filho é quem manda em mim. Quero muito alimentar a cria, se Deus permitir, no mínimo um ano.
Preciso controlar as finanças, tudo o que vejo quero comprar. Miguel diz que os enfeites, ursinhos e afins que comprei, são mais para impressionar as visitas do que o bebê, pensando bem....acho que ele tem razão.
Mamãe liga quase todo dia para saber como estou, ela sabe que tenho quedas de pressão quando sinto fortes cólicas. Os enjôos foram embora, graças a Deus! Papai disfarça, acho que ele tem vergonha de demonstrar o tamanho da felicidade que sente pelo título de avô.
Tenho preocupações antecipadas, ainda não decidi quem será a madrinha; meu irmão já tem posto garantido, mas as minhas amigas são primeiro lugar na lista de preferência, todas ocupam a mesma posição, não sei mesmo como optar; precisarei do voto de Minerva do maridão.
No trabalho, virei xodó, quase me pegam no colo de tanto cuidado e eu adoro tanto mimo. Quando o bebê mexe, todo mundo quer tocar a barriga, querem esperar até o próximo movimento e ele se recolhe como se quisesse debochar e só mexe quando as mãos se afastam. Ele brinca desde a barriga.
Não vejo a hora dele nascer e mostrar qual dos gens é o mais forte, nós aqui em casa, ficamos montando o quebra-cabeça, querendo que ele tenha os olhos da mãe e os cabelos do pai.
Preciso providenciar algumas batas, vestidos e calças largas, as roupas já estão ficando repetitivas e meu corpo começa a tomar novos tamanhos. Mamãe disse que engordou 20 quilos quando estava grávida de mim e o médico dizia que era normal; ela nunca mais voltou a ser a mesma.
Tomo alguns cuidados, tento controlar minhas fomes absurdas, meus excessos; cuido da pele, quase tomo banho de óleo de amêndoas. Outras vaidades tive que abandonar, não pinto mais os cabelos, não os aliso mais, vez em quando, não agüento ver minhas raízes no espelho, mas todo esse cuidado é em prol da coisa mais importante da minha vida. Eu renuncio a tudo como Cristo, como mãe.
A parentada diz que vai me ajudar na primeira semana, me ensinarão os cuidados básicos. Estou bem insegura; se bem, que mamãe diz que no tempo dela tudo era mais difícil e que hoje em dia pode-se até molhar o umbigo; tenho receio com a moleira, mas isso é coisa pra depois. A comadre disse que tudo é questão de jeito, e mãe que é mãe tira de letra. Minha maẽ é sensacional; minha cabeça nunca bateu na banheira e até hoje ela continua me apoiando. Se eu conseguir ser metade do que ela foi me dou por satisfeita.
O sono me bate quando encosto a cabeça, vou deitar. Meu bebê até há pouco soluçava, mas acho que caiu no sono, estou indo pra cama também.

Rosemeri Sirnes


Ilustração: Suppa

quinta-feira, 6 de novembro de 2008




Entre as ruas do Flamengo e a banca de jornal

Eu o vi de costas pela primeira vez e o li antes de qualquer letra. Ele estava na banca de jornal, procurando por assuntos. Me pus a seu lado para dar oportunidade à conversa. Tive a vontade repentina de ser sincera, mas sei que em tempos de desconfiança, era mais fácil assustá-lo. O olhei como quem pede licença e ele sorriu com gentileza. Quis dizer a ele que queria um desses em casa; quis dar uma cantada barata, porque eu sabia que no silêncio eu seria mais uma passante e ele merecia minhas honrarias. Quis tirar sua foto; só a minha retina não bastava, ele merecia outros olhares. Ele merecia os elogios esfuziantes de Roberta. Tenho certeza que ela diria que finalmente refinei meu gosto.
O homem merecia um poema. Sei que ele deve ter, como todos nós, seus muitos defeitos e pecados para pagar até o fim; mas seus olhos verdes mereciam uma jóia, seu corpo merecia o meu enlaço, aquela cicatriz quase imperceptível no canto do olho merecia a minha atenção, e eu estava lá abancada na primeira fila da sala de cinema, já com dor no pescoço e sortuda.
Era o típico garoto Zona Sul fora de alcance. Reparei a camiseta amarrotada de golas esgaçadas, o seu desleixo elegante, a calça de marca surrada que lhe atribuía um charme a mais.
Ele passa sem perceber que a rua é a sua passarela.
Esse homem, por quem não sou apaixonada, passeia nas ruas do Flamengo indo a qualquer lugar, menos para minha casa. Adoraria saber seu paradeiro, seus caminhos, ruas, os lugares que me levam a ele; não desejo um encontro, quero apreciá-lo à distância, não tão longe que me impeça de sentir o cheiro de perfume importado. Esse homem dissasociado do meu mundo, esse homem que eu julgo inacessível, chamou meus olhos em sua direção; caminhamos juntos até o meu destino, a partir de então outros olhos o seguiram.
Esse homem da última vez, esteve de passagem em mim.O homem de hoje de manhã, acordou cedo a minha percepção; lembrou-me de olhar para descobrir, observar com calma, olhar primeiro as costas, o avesso, o outro lado, só então caminhar mais perto e dizer coisas tolas sem risco.
O homem da rua, sem nome, é o meu instinto aguçado, é a minha espera pelo sabor apurado, minha espera para não queimar a língua.
Nenhum Roberto, Marcelo ou Fernando, ele é o rapaz que eu vi na banca de costas e tudo o que vem depois dele é superflúo.

Rosemeri Sirnes



Foto: Inês Sacadura

segunda-feira, 3 de novembro de 2008


DOMINGO NA BIBLIOTECA

Sorrio querendo esconder os dentes. Os reprimo sozinha na mesa da biblioteca enquanto o silêncio mordisca minha orelha.

Leio livros como quem se apaixona, como quem encontra a melhor maneira de não fazer doer, como quem almeja ser uma mulher mansa, como quem busca uma fórmula, uma resposta para várias interrogações. Leio e sinto notas musicais tocarem meu rosto, a sedução das palavras soprando versos... estou mesmo apaixonada. Pouso os olhos no homem da mesa em frente, um olhar satisfeito, um olhar de gozo. Ele percebe que penetro em seus olhos as palavras que meus olhos tocam e que de passagem penetra meu corpo.

No instante seguinte penso que poderia conversar contigo por telepatia nessas horas de sala fechada e silêncio absoluto. Nessa tarde de domingo, certamente, se não estivesse aqui, estaria dormindo. Nenhuma idéia seria fecunda.

Ao contrário disso, tenho tuas palavras, teus acenos, uma parecença que me faz acreditar que seríamos amigos ou um amor escondido, um amor não-correspondido, um amor disfarçado como o que tenho por Fabrício.

Leio seus livros sorrindo e querendo disfarçar, vejo alguns olhares de esquina em minha direção e finjo um bocejo, estou sozinha e temo a suspeita de desvario; leio como se passasse por entre as flores no dia de Finados com o orgulho de não precisar velar nenhum morto.

Vejo tantos homens a minha volta e me pergunto “por que há tantos homens na biblioteca num domingo?”, sérios homens, numa concentração que somente o salto da mulher desvia. Percebo homens com seus "notebooks", cabeças enterradas nos livros; os leio sem cerimônia, sua solidão, a paixão pela Filosofia, a monografia de fim de curso, a resenha que será entregue na segunda-feira.

Distraio, mas leio palavras inertes, leio palavras de pernas e braços, leio a palavra que a gente constrói a cada passo, a cada movimento involuntário.

As palavras que saltam aos olhos dizem que o poema sou eu. A mulher que reclama sou eu, que pede menos sinceridade, que oferece estadia sem se preocupar com o fim da temporada. Sou a mulher que não reclama uma vida inteira, sou a mulher que você narra sem saber; metade dessas, sou eu.



Rosemeri Sirnes

terça-feira, 28 de outubro de 2008


OBRA DE ARTE

Clarisse cresce no amadurecimento da fruta

Minha filha-semente

Entre erros e acertos

Ela é a caligrafia bonita seguindo o curso da linha

Minha leitura cuidadosa da vida

Minha preocupação em não ultrajar a Língua Portuguesa

Clarisse é a minha ponte de futuro

É a certeza do meu ventre robusto

É o meu sorriso na fotografia

É projeto da casa em construção

O que dizer da criatura que ainda não nasceu?

O que pintar dessa tela em branco?

A minha filha nasce do sonho de mimcontigo

Clarisse é sempre um rosto bem-vindo na moldura

Consigo vê-la sorrindo, seus olhos famintos como os meus

Meu ventre vem se preparando para o encontro

Arrumo o quartinho para aninhá-la a vontade

Fernando pode me surpreender

Minha semente crescer se escondendo

Clarisse será meu sonho interrompido de laços e cor- de- rosa

Fernando fará meu sonho azul

Será meu homem, meu menino

Nasce em mim vontades

E um desejo de lamber tijolos

Cresce em mim uma realização

Feminina-masculina

Nasce de mim a bênção



Rosemeri Sirnes


sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Tarde-noite


À tardinha eu tive uma idéia, subitamente uma lâmpada sobre a cabeça; minha idéia de caneta azul e sublinhado vermelho, idéia de negrito e caixa alta, idéia das boas; idéia que me pegou de calça baixa, idéia de banheiro embaixo do chuveiro, idéia de acender fogueira. Logo no início da noite, num sol que se mostrava lá fora pelo horário de verão, eu tive a intenção, o que já é um começo; de lançar palavras a esmo e derrubar os pinos do boliche. Tenho que dizer, tive fome também, das grandes, então comi a idéia que é essa aqui. Provei da idéia e gostei.


Rosemeri Sirnes




Fotografia: Vladimir Repkin